Cibercultura por Pierre Lévy, 1997 – uma perspetiva atual
Em novembro de1997 as Editions Odile Jacob de Paris publicaram um
livro com 322 páginas do pensador Pierre Levy – Cyberculture, Rapport au Conseil de l’Europe - resultante de um relatório
apresentado ao Conselho Europeu no âmbito do projeto “Novas tecnologias:
cooperação cultural e comunicação”. Em 1999 a editora brasileira Editora 34 de
São Paulo publica a tradução brasileira, que está
disponível em PDF, e a que tive acesso.
Dezasseis anos depois da divulgação deste trabalho original temos
a noção do seu caracter inovador para a época, dando uma visão multifacetada do
impacto das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) na sociedade
humana, que era atingida por tecnologias, metodologias e práticas completamente
novas. Devemos realçar que o livro teve como origem uma encomenda do Conselho
Europeu que necessitava de ajuda para definir as políticas de colaboração
cultural e de comunicação que o nosso espaço tentava construir. Esta sociedade
em rede (ou melhor com inúmeras redes), europeia e global, não tem parado de
evoluir e por essa razão considero esta obra datada. Mas as suas bases teóricas
e as reflexões práticas continuam a servir de orientação para o mundo atual.
O livro esta dividido em três partes: Definicões,
Proposições e Problemas, seguidas de Conclusões.
Vale a pena rever os temas principais que estão distribuídos pelas
três partes do livro pois ajudam-nos a ter uma noção da extensão, profundidade
e complexidade dos conceitos discutidos (mantendo a tradução em
português-brasileiro).
Parte 1: Definições
As tecnologias tem um impacto? A infra-estrutura
técnica do virtual. O digital e a virtualizacao do saber. A interatividade. O
ciberespaco ou a virtualizacão da comunicação.
Parte 2: Proposições
O universal sem totalidade, essência da cibercultura.
O movimento social da cibercultura. O som da cibercultura, A arte da
cibercultura. A nova relação com o saber. As mutações da educação e economia do
saber. As arvores do conhecimento, um instrumento para a inteligência coletiva
na educação e na formação. O ciberespaço, a cidade e a democracia eletrónica.;
Parte 3: Problemas
Conflitos de interesse e diversidade dos pontos de
vista. Crítica da substituição. Crítica da dominação. Crítica da crítica.
Respostas a algumas perguntas frequentes.
Conclusões: A cibercultura ou a tradição simultânea
Cultura, como Instrução, saber, estudo,
juntou-se à Eletrónica, às Telecomunicações e à Multimédia de forma a permitir uma nova
Sociedade em Rede, com as suas Ciberculturas, onde estamos inseridos. A
inteligência coletiva que antes estava muito reduzida no espaço e no tempo
passou a não ter fronteiras (quer espaciais quer temporais). Os novos fenómenos
globais, como a Primavera Árabe, o ciberterrorismo, a economia global e o
elearning, entre outros, passaram a dar uma dinâmica própria aos vários grupos,
países, regiões e continentes. As várias Ciberculturas desenvolveram-se de
forma quase infinita.
Passarei a dar dois exemplos da cibercultura que nos invade e dos
respetivos desafios que temos de vencer.
Exemplo 1
Há cerca de
18 anos, minha filha tinha 3 anos de idade e gostava muito de ver as gravações
de vídeos de filmes infantis então em suporte VHS (em vídeo analógico).
Manipulava com grande perícia os gestos necessário para ligar/desligar o leitor
e o televisor, introduzir a cassete vídeo (e ejetá-la para a substituir por
outra), iniciar a leitura (em velocidade normal ou rápida para a frente ou para
trás) e parar a sessão. Estas aptidões foram adquiridas apenas por ver os pais
executar esses gestos, pais que nunca a ensinaram de forma formal. A avó
materna, então com 62 anos, recusava-se a "mexer na máquina" e
alertava-nos para os eventuais perigos para a "menina" da autonomia
que lhe era permitida. Tentámos múltiplas vezes convencer a avó a utilizar a
tecnologia mas sempre se recusou até falecer (o que aconteceu este ano). Apenas
manipulava a televisão, aptidão adquirida há muitos anos, ainda em nova.
Comentário: os seniores
com 65 anos ou mais de idade, já constituem 20% da população portuguesa (2
milhões) e serão 35% em 2050. Torna-se necessário encontrar formas para atrair
este numeroso grupo para a cultura atual ou seja para a Cibercultura.
Exemplo 2
Nos anos
cinquenta do século passado costumava viajar com meus pais pela península
ibérica. Meu Pai era o proprietário e o condutor da viatura automóvel, numa
altura em que eram mais numerosos os meios não motorizados como os animais de
carga e transporte, as carroças, etc. Numa época em que não havia o Automóvel
Clube de Portugal nem telefones disponíveis, o condutor automóvel precisava,
obrigatoriamente, de ter conhecimentos e aptidões para poder resolver os
inúmeros problemas de mecânica que surgiam diariamente: furos dos pneus (com
câmara de ar cujo orifício da rutura tinha de ser “colado” com uma pequena tira
de borracha) ou entupimento dos filtros da gasolina (devido ao elevado grau de
impurezas que continha nomeadamente em Espanha após a guerra civil) entre
outros azares da condução automóvel em
meados do século XX. Minha Mãe não tinha carta (nem fumava), necessitava de
autorização do marido para sair do país e dedicava-se à ocupação de dona de
casa.
Hoje,
sessenta anos depois, a mudança é radical. Mas na Arabia Saudita as mulheres
não estão autorizadas a conduzir automóveis.
Comentário: O automóvel
precisou de mais de cem anos para se generalizar como meio de transporte
individual e coletivo. O livro impresso produzido pelo método de Gutenberg
iniciou-se em 1450 na Europa (e no século XI na China) e precisou de longos
séculos para se transformar numa peça essencial de cultura, de comunicação e de
ensino-aprendizagem. A Cibercultura – a cultura associada às novas TIC – está a
expandir-se à velocidade da luz. Esta evolução é brutal apenas numa década. O
impacto que pode ter nas pessoas (individualmente e em grupo) e nas sociedades
é enorme. Não nos devemos esquecer que, ao contrário de outras épocas da
evolução da humanidade, o objetivo não é descobrir e desenvolver as elites.
Agora temos de atingir todos, desde os jovens com acesso ao Ensino, até aos
outros, incluindo os menos jovens, os seniores e todos aqueles com graves
dificuldades socioeconómicas. No III
Coloquio Luso-Brasileiro sobre EaD/Elearning foi referido que 50% da
população brasileira não tem acesso ao computador ou à web.
Temos pois de
fazer uma reflexão crítica sobre a Cibercultura, introduzindo a problemática do
Tempo e dos Recursos para que a cultura e a tecnologia sejam absorvidas pela
comunidade humana para contribuir para a sua liberdade e felicidade (e não
ficarmos apenas nas comunidades virtuais existentes).